DEZENAS, talvez uma centena (ou mais) de milhares de trabalhadores marcharam ontem sobre Brasília para protestar contra o governo ilegítimo de Michel Temer e contra a destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários, que esse governo está patrocinando. Foi uma manifestação monumental – o maior protesto de que se tem notícia na capital federal desde sua fundação. Houve sério confronto com a polícia, vários feridos, e, em meio ao confronto, atearam fogo nos prédios do Ministério da Agricultura e Ministério da Fazenda.
As vozes do conservadorismo se fizeram ouvir imediatamente, dizendo que se tratava de “baderna”, de “vandalismo” e de “selvageria” provocados por um bando de delinquentes irresponsáveis. “Onde já se viu destruir a propriedade privada e tocar fogo no patrimônio público?”, perguntavam. É, não se deve mesmo destruir a propriedade nem queimar o patrimônio público; ninguém apóia isso, mas destruir e tocar fogo nos direitos dos trabalhadores, na aposentadoria deles, na democracia, nos direitos fundamentais, na soberania popular e no voto de mais de cinquenta milhões de brasileiros, isso pode, né?
Há muito incendiário em Brasília. O próprio presidente não eleito é um deles – e talvez o mais eficiente. Sem nenhuma proximidade com o povo, aliás, longe dele, a primeira coisa que fez o presidente diante dos protestos foi convocar as Forças Armadas. Avaliou mal a situação. Não soube entender nem muito menos enfrentar o momento e já se escondeu atrás dos canhões. Michel Temer é uma caricatura de presidente. É ilegítimo. É fraco. É incompetente. E, por isso mesmo, representa uma ameaça à normalidade institucional.
Seu gesto de convocar as Forças Armadas para reprimir o povo foi simplesmente um gesto irresponsável, leviano. Foi uma atitude simplesmente incendiária. E não só pelo risco a que expôs o povo nas ruas – pois o exército é treinado para combater e eliminar inimigos, não para conter cidadãos -, mas porque o militarismo ainda ameaça nossa democracia. Ele está entranhado de forma latente na Constituição Federal de 1988 – é um entulho autoritário que ainda não foi varrido por completo do nosso cenário político; mesmo depois da redemocratização.
Notem que a Constituição brasileira de 1988, considerada a “Constituição cidadã” e uma das mais democráticas que já tivemos, acabou por constitucionalizar a “ideologia militar da segurança nacional” quando estabeleceu, no seu art. 142, que as Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, nos termos da legislação complementar. E a legislação que complementa o art. 142 do CF é justamente aquela agora invocada por Michel Temer, ou seja, a Lei Complementar nº 97/99, cujo art. 15 determina que a garantia da lei e da ordem, bem como o controle operacional dos órgãos de segurança pública, serão simplesmente transferidos às Forças Armadas.
Isso quer dizer que, quando solicitada a intervenção das Forças Armadas para a garantia da ordem pública ou social, o presidente da república deverá abrir mão de seus poderes constitucionais à frente das tropas, delegando inteiramente o controle das operações aos comandantes militares. Na prática, isso significa que as Forças Armadas poderão assumir o comando do país, no lugar do presidente da república, sempre que for necessário, e pelo tempo necessário, para garantir os tais poderes constitucionais, a lei, a ordem e a paz. Um golpe militar, portanto, pode ser dado “nos termos da Constituição”. O presidente está, literalmente, brincando com fogo…
Vejam, portanto, até onde é capaz de chegar esse presidente; notem o risco que ele representa para o regime democrático. É um homem autoritário, perdido e alheio a seu tempo – fora da realidade. Desde o momento de sua posse, já nas primeiras nomeações de seus ministros, esse homem não tomou nenhuma decisão acertada, não deu uma dentro – nem uma, sequer. Ontem, em Brasília, enquanto alguns manifestantes exagerados estavam dispostos a pôr fogo em prédios para reivindicar direitos, o presidente da república tentou pôr fogo na democracia para manter seus poderes e privilégios.
Em vez de exigir a apuração dos abusos; a identificação dos depredadores e dos eventuais criminosos; garantindo também a proteção e a integridade física dos milhares e milhares de manifestantes pacíficos, o presidente da república preferiu reprimir todo o mundo – indistintamente. E reprimir com força máxima, numa demonstração de que o governo federal está insensível e longe, muito longe, dos interesses e das legítimas reivindicações populares.
É exatamente isso o que nos legou um golpe de estado produzido por uma elite antidemocrática, antipopular e antinacional. Ou seja, legou-nos um presidente ilegítimo, inapto, e agora também incendiário. Alheio à sua falta de legitimidade; ao seu isolamento político; à sua situação jurídica de investigado; ao seu status político de presidente inelegível, enfim, alheio ao que se passa à sua volta, Michel Temer segue fora da realidade – dizem os historiadores que, enquanto Roma ardia, Nero tocava sua lira, indiferente a tudo.
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