Primeiras imagens da rua

               COM CERTEZA, todos diremos que o direito de protestar nas ruas e nas praças, a favor ou contra os governos, é uma decorrência dos direitos fundamentais de reunião e de livre expressão do pensamento. Diremos certamente que tudo isso faz parte da democracia. Tais afirmações são tão óbvias que qualquer cidadão, qualquer indivíduo, qualquer “democrata raso” ou “democrata de manual” concordará imediatamente com elas, sem maiores discussões.

                À parte tais obviedades, impõe-se também o desafio de interpretar e compreender as manifestações populares, sobretudo, aquilo que tais manifestações almejam e as reivindicações que elas conduzem. Essa tarefa, obviamente, é coisa para os especialistas e “entendidos” de todo gênero. No entanto, nada impede que o cidadão comum, também em nome do mesmo direito de livre expressão do pensamento, possa “recolher” e tentar traduzir algumas das primeiras imagens dos protestos do último domingo (15.3.15) contra o governo Dilma Rousseff nas ruas e praças do Brasil.

             Uma primeira conclusão óbvia é que o movimento não foi pequeno. Dizem as folhas e as mídias que os protestos reuniram aproximadamente 1,7 milhão de pessoas em todo o Brasil. E se os protestos tiveram essa dimensão é porque carregam alguma relevância, alguma significação política que não pode ser menosprezada, nem muito menos ignorada por aqueles que devem satisfações à parcela da população que exerceu legitimamente seus direitos na rua.

            Outra conclusão igualmente óbvia é que os participantes dos protestos eram cidadãos e eleitores que na última eleição não votaram, ou votaram contra a presidenta reeleita, preferindo seu adversário. Tanto é verdade que o próprio senador Aécio Neves expressou seu apoio às manifestações do último domingo, bem como o apoio do partido que ele preside, o PSDB, levando muita gente a concluir que os movimentos foram mesmo uma espécie de “terceiro turno” das últimas eleições presidenciais – e foram.

             Prova disso é que as maiores concentrações de manifestantes no dia de ontem se deram exatamente nos redutos eleitorais de Aécio Neves, o que deita por terra a suposta “espontaneidade” do movimento que, de resto, já estava anunciado desde o dia 26 de outubro, quando se começou a falar no impeachment da presidenta reeleita, mal haviam se fechado as urnas que decretaram a vitória indiscutível de Dilma Rousseff no segundo turno das eleições de 2014.

             As imagens (e os nossos estereótipos) revelaram também que a população que foi às ruas neste domingo era uma população de classe média e classe alta, quase que unanimemente branca. Note-se que até mesmo na Bahia, cuja população é formada por 75% de pardos e negros, as imagens das ruas exibiam apenas os brancos protestando, muitos deles com cara de turista ou de soteropolitano bem-postado na vida. Aliás, o jornal britânico The Guardian noticiou que os protestos contra Dilma Rousseff foram feitos por “centenas de milhares de brasileiros brancos de classe média”.

               Por conseguinte, as imagens das ruas revelaram que as classes baixas, a população da periferia, os pobres, negros, índios e a ralé de todo tipo estavam completamente excluídos da festa. Até mesmo as regiões geográficas onde os maiores protestos se deram, Estados do Sul e Sudeste, avenidas, ruas e praças centrais das cidades, orlas marítimas, bairros de classe alta etc., atestaram que o povão da “perifa”, regional e urbana, estava longe, bem longe da indignação dos manifestantes.

            As imagens da rua revelaram que os participantes dos protestos, na sua maioria, cantavam o hino nacional e usavam roupas ou pinturas com cores da bandeira do Brasil, sugerindo que estavam ali em defesa da pátria, movidos por um comovente patriotismo. Mas, o curioso é que, apesar do súbito “patriotismo” dos manifestantes, não se viu nenhuma faixa, nenhum cartaz, nenhum banner de conteúdo nacionalista, defendendo o patrimônio nacional como, por exemplo, a Petrobras, a biodiversidade da Amazônia e a jazida do pré-sal, que estão hoje seriamente ameaçadas pela cobiça de governos e grupos privados estrangeiros.

               Ficou evidente pelas imagens da rua que a motivação dos protestantes era uma só: A VELHA CORRUPÇÃO. As imagens revelaram que os manifestantes estão absolutamente convencidos de que a corrupção no Brasil começou com o governo do Partido dos Trabalhadores e que, portanto, a moralização da política brasileira depende apenas e tão somente da mudança dos atuais governantes, seja pelo voto, seja pelo impeachment, seja até mesmo por algum tipo de intervenção militar.

            Pelas ruas não se viu nenhum protestos contra o sistema político hoje inteiramente corrompido pelo poder econômico; nada se viu contra o financiamento privado de campanha, que é um foco de corrupção; não se observou nenhum ato contra a PEC 352/13 que “legaliza” a corrupção política, autorizando as doações eleitorais feitas por empresas; e tampouco se viu qualquer apoio a uma REFORMA POLÍTICA ampla e republicana. A motivação dos manifestantes era mesmo monotemática, ou seja, um protesto moralista dirigido, obsessiva e seletivamente, apenas contra o governo e o Partido dos Trabalhadores.

           As primeiras imagens da rua permitem concluir que as manifestações deste 15 de março de 2015 – indiscutivelmente legítimas – foram manifestações com óbvio cunho partidário, com forte viés moralista e conservador, com a participação exclusiva dos estratos médios e superiores da população brasileira, portanto, com a constrangedora (e pedagógica) ausência das classes populares.

           Por fim, as imagens chamaram a atenção também por causa do evidente nível de despolitização dos movimentos, pois as mensagens e as reivindicações dos manifestantes passaram ao largo de questões políticas urgentes e fundamentais – inclusive aquelas questões, como a reforma política e a reforma do sistema partidário-eleitoral, que poderiam combater com maior eficácia, e com mais inteligência, a corrupção que os manifestantes tanto esconjuravam.

             Quer dizer, considerando-se o autoritarismo tosco das mensagens estampadas nas ruas, a inexistência de uma pauta de reivindicações plausíveis, a explícita falta de consciência política por parte dos manifestantes, bem como a completa ausência de pluralismo participativo e democrático nas manifestações, não seria um exagero concluir que os protestos do último 15 de março foram um enorme fiasco político, um fiasco histórico, daqueles para serem definitivamente esquecidos.

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