Limites do lulismo

            NUMA entrevista concedida à televisão, o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, recusou-se a fazer qualquer comparação entre seu pequeno país e o Brasil. Por conseguinte, deixou claro que suas realizações como presidente do Uruguai não deveriam ser comparadas com aquilo que realizou seu colega Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil.

       Segundo Pepe Mujica, os problemas, as dimensões territoriais, econômicas e populacionais dos dois países são muito diferentes, isto é, o Brasil é muito grande e o Uruguai é muito pequeno para serem comparados entre si. Assim, quando solicitado a avaliar o governo de Lula da Silva, o ex-presidente uruguaio disse apenas, modestamente, que não se sentia habilitado a dizer qualquer coisa sobre o que ele considerava o maior, o mais complexo, o mais forte e o mais importante país da América Latina.

          Como o jornalista insistisse um pouco, desejando saber a opinião de Pepe Mujica sobre Lula da Silva, o ex-presidente uruguaio, com o olhar meio distante (com os olhos de quem espreita o horizonte tentando desvendá-lo), disse simplesmente que Luiz Inácio Lula da Silva havia sido um grande presidente, muito importante para o Brasil e para toda a América Latina, acrescentando ao final uma frase enigmática: “Pero, yo creo que muchos brasileños aún no se dieron cuenta de lo significado de Lula da Silva”.

         O simpático e modestíssimo ex-presidente do Uruguai talvez tenha razão! É muito difícil entender o complexo arranjo econômico, social e político que caracterizou o conjunto de reformas e programas que hoje denominamos de “lulismo”, sobretudo, porque essa tarefa estará sempre atravessada por questões ideológicas que geralmente despertam sentimentos contraditórios como paixão e ódio, admiração e desprezo, adesão e repulsa, convicções e incertezas, entusiasmo e preconceito.

            Ninguém está livre, ninguém está inteiramente despido de suas próprias ideologias para fazer análises políticas com isenção, lucidez e clareza objetiva, muito menos quando se está inserido no contexto histórico que se pretende analisar. Não adianta dizer que é apartidário, apolítico, imparcial ou neutro. Ninguém escapa aos condicionamentos e influências ideológicas – nem à direita nem à esquerda. A neutralidade talvez seja um atributo reservado apenas aos deuses, que estão acima das paixões, dos enganos e das ambições humanas.

           Por isso, quando se tenta analisar um fenômeno político tão complexo e polêmico como o “lulismo” é preciso ter cautela e humildade, é preciso ter pelo menos a consciência de que os fatores ideológicos estarão sempre espreitando nossos espíritos e, muitas vezes, distorcendo a realidade que pensamos enxergar com toda imparcialidade e lucidez. Muito embora seja comum acharmos que a ideologia é sempre um “defeito alheio” (Paul Ricoeur), o fato é que ninguém está livre das influências e distorções ideológicas.

             Seja como for, e sabendo disso, há alguns números, fatos e resultados do “lulismo” que são objetivos, não dependem de posicionamentos ideológicos nem de visões subjetivas do mundo. Por exemplo, é um fato concreto que, pela primeira vez em 500 anos de história do Brasil, o “lulismo” promoveu o maior e mais bem-sucedido programa de inclusão social, jamais visto na América Latina, com a integração de mais de 40 milhões de pessoas na chamada “nova classe média”.

          Ainda no campo social, segundo dados do FMI e do Banco Mundial, é um fato concreto que a renda per capita da população brasileira era de US$ 2.810 em 2002 e dez anos depois já experimentava um aumento de 400%, saltando para US$ 11.208. O salário mínimo, que em 2002 no final do governo FHC equivalia a US$ 81, aumentou 300% sob o “lulismo” e hoje vale mais de US$ 250.

            É também um fato objetivo que o “lulismo” quintuplicou o PIB brasileiro em 10 anos, fazendo-o saltar de modestos 500 bilhões para dois trilhões e trezentos bilhões de dólares – um crescimento de mais de 400% em apenas uma década. Também no campo econômico, é um fato que esse crescimento sob o “lulismo” elevou nossas reservas internacionais de modestíssimos 37 bilhões para 380 bilhões de dólares – um aumento de 1.000% do nosso estoque de reservas.

               É um fato objetivo que o “lulismo” promoveu a maior aproximação entre os países latino-americanos em 500 anos de história, fortalecendo o Mercosul, a Unasul e a Celac; aproximou-se dos países asiáticos, da Rússia e da África; e, com essa política externa, favoreceu as estratégias políticas e econômicas (como o Banco dos Brics) para a construção de um mundo multilateral – em oposição à geopolítica unipolar liderada apenas por uma única potência econômica e bélica como os EUA.

          Tudo isso resultou de um arranjo inédito que uniu tanto a burguesia financeira quanto o setor produtivo e a classe trabalhadora no Brasil. Alguns analistas entendem que o “lulismo”, na verdade, caracterizou-se por ser um bem-sucedido pacto de desenvolvimento “nacional-social-rentista”, capaz de conciliar os interesses de ricos e pobres, de produtores e financistas, promovendo crescimento econômico com inclusão social.

             Por essas realizações todas, o ex-presidente Lula da Silva deixou o governo com 87% de aprovação popular, mas hoje os brasileiros começam a se perguntar se o “lulismo” é um pacto que poderá ser ainda sustentado por mais algum tempo ou se, pelo contrário, ele já deu o que tinha que dar, desmoronou sob o governo de Dilma Rousseff e, portanto, estaria completamente esgotado.

             É difícil responder a essa questão. As opiniões variam, os especialistas divergem e ainda estão muito longe de qualquer certeza sobre a atual conjuntura política e econômica brasileira e mundial. Os órgãos de comunicação de massa no Brasil, todos à direita (sem exceção), não ajudam a compreender este momento brasileiro, porque são suspeitos e chegam até a distorcer descaradamente fatos, números e verdades, com o claro objetivo de obscurecer o fenômeno e as conquistas do “lulismo”, decretando o esgotamento e a “morte prematura” dessas políticas progressistas de esquerda.

            A imprensa brasileira não deixa a população ver o que realmente está em jogo no atual momento do país, pois planta a confusão na sociedade batendo sempre na tecla monotemática da corrupção sem publicar as informações economicamente relevantes e verdadeiras. Quem analisa e julga o Brasil através dos “olhos da grande mídia empresarial”, sem um mínimo de exercício crítico, acha que aqui na 7ª economia do mundo não se faz outra coisa senão assaltar os cofres públicos.

            O governo, por sua vez, numa falha gritante, não criou órgãos de comunicação social de massa nem canais para esclarecimento da sociedade, por isso, hoje não consegue informar a população sobre  suas próprias realizações, sobre o que faz nem por que faz ou deixa de fazer. Com isso, os órgãos privados de comunicação, conservadores e porta-vozes das classes dominantes, praticamente monopolizaram a “verdade” sobre as questões políticas, sociais e econômicas no Brasil.

            Esse “monopólio da verdade” pela mídia burguesa explica muito bem as reações conservadoras da sociedade contra o “lulismo”, contra as políticas de inclusão social e de combate à pobreza e desigualdade. Explica também a convicção, bastante generalizada, de que as políticas e programas do “lulismo” estão esgotados, desequilibraram as contas do governo e seriam responsáveis pela “bancarrota” da economia brasileira, com ameaça de processo inflacionário.

             Isso é tudo mentira. As políticas sociais de inclusão e de valorização real do salário mínimo incrementaram o consumo, que, por sua vez, impulsionou o crescimento econômico do país; a economia brasileira nunca esteve tão sólida quanto agora, com tantas reservas internacionais; as contas estão equilibradas e estamos muito longe de “bater às portas” do FMI; a inflação está dentro da meta há 13 anos; a recessão econômica é mundial desde 2008, mas apesar dela o nosso quadro é típico de “pleno emprego” com “ganhos reais de salários”; e os limites do “lulismo” não decorrem de políticas equivocadas, e sim de limites impostos pela direita, que deseja romper o pacto “nacional-social-rentista” costurado em 2003 por Lula e José Alencar.

      A intenção da direita, sejamos francos, é atirar-se de novo nos braços do neoliberalismo, completar o desmonte do Estado brasileiro, consolidar a hegemonia e a liderança unipolar dos EUA, revogar de vez as medidas de proteção da atividade econômica em nosso território e concluir a desnacionalização da nossa economia, hoje largamente invadida e dominada pelo capital transnacional.

              Há muitos sinais no sentido de que há mesmo uma ofensiva neoliberal sobre o país. Por exemplo, o ajuste fiscal do ministro Joaquim Levy, imposto pelo rentismo sob o argumento de que é preciso sanear as contas e obter o tal superávit primário para retomar o crescimento econômico, significa apenas corte nos programas sociais de inclusão e combate à desigualdade, bem como aumento de impostos indiretos e regressivos, pagos basicamente pelos pobres e pela classe média.

                Além disso, a classe média tradicional, e as elites brasileiras, já não vê com bons olhos a divisão de alguns espaços públicos com as classes de baixo; cresce o apetite de gringos e aventureiros sobre a maior empresa pública brasileira (Petrobras); cresce a cobiça deles sobre nossas reservas de petróleo na jazida do pré-sal; e, por fim, convenhamos, dezesseis anos de um governo de esquerda é muita coisa para o estômago da burguesia nacional e estrangeira, exatamente essa burguesia que conhece tão bem a importância geopolítica do Brasil na América Latina e no mundo, e nunca teve quaisquer compromissos nacionalistas com seu próprio país – a pátria da burguesia é o dinheiro.

             Em suma, o que está em jogo neste momento não é propriamente a sobrevivência ou os “limites do lulismo”, mas, sim, a escolha histórica sobre se queremos de fato ter uma economia nacional forte e um país crescentemente justo ou se, pelo contrário, desejamos “INTEGRAR” a nossa economia na “linha de produção” das grandes organizações econômicas multinacionais e “ENTREGAR” de vez o nosso patrimônio público e as nossas riquezas naturais àqueles que sempre nos exploraram – com a conivência das nossas elites desde os tempos das caravelas.

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